LIVRE & OBJETO
por
Joyce Cavalccante

[Text in English]
[Texto en Español]


I

O amigo de papai ia nos visitar todas as quintas-feiras depois da janta. O pessoal grande da casa dizia que era porque ele era um solitário e não tinha ninguém de seu, a não ser as migalhas de noite que nossa família lhe dava. Explicação cômoda para mim que juntava a estas migalhas as migalhas viscosas que molhavam minhas pernas quando ele me botava no colo, sorridente me abraçava, me balançava e me dava chocolates, para distrair minha curiosidade enquanto se desincumbia de sua volumosa carência.


II

O filho do jardineiro disse só me ensinar a armar arapuca pra pegar passarinho se eu tirasse minha roupa de menina, pra ele menino poder me ver. Depois, foram dizer à mamãe que todos os dias eu andava ensinando os moleques da rua a pegar passarinho. Ninguém vai acreditar que foi bom. Assim até hoje eu minto. Digo que não aprendi a armar arapuca, nunca peguei um só passarinho na minha gaiolinha, nem gosto desses pássaros que ando desde esse tempo tentando acolher.


III

De saia pregueada, boina e meia soquete, usava passar pela rua impunemente. Colegial. Não sabia que do outro lado da calçada, alguém, de quem nunca soube sequer o nome, me espreitava; esperando uma vez já há muito acontecida na própria imaginação. Numa chance ele me parou, e me pôs os dedos arrematados por unhas imundas, e me encostou no prazer. Meu espanto maior foi ver que isto era bom, assim como me disseram no colégio, viu deus quando notou que tinha construído o mundo.


IV

Enquanto no cinema seu polegar e indicador me pinçavam os mamilos, eu dei de lembrar daquela plantinha agreste chamada malícia, que se contrai à menor ameaça de toque. Dei de pensar e de me perguntar se ela, a planta, seria capaz de sentir o mesmo quase desmaio bom que naquele minuto eu sentia, e se dela era possível sair um não saber se beijo ou deixo me largar como cordas de um banjo, manipuladas por dedos ágeis que me descem pelo corpo como uma aranha, entrando por baixo de minhas saias sem argumentos.


V

Era tempo para que já um dos homens tivesse feito em mim o que meu corpo esperava quando se amanteigava e doía, inchava; preparado para receber, absorver, tragar.Baume & Mercier Replica Watches E, eu me lembro do primeiro a me fazer no sexo uma sensação de quente e frio, de gostar e não. De querer que tire enquanto grito, reclamando, pedindo que bote. Foi vez de pensar não poder agüentar, balanceada ao desejo mais forte de conhecer um movimento que me complementasse. Me lembro de querer ter sido igual a ele, me expulsar como ele se fazia em cima de mim, mista de esperma e sangue, nojo e medo.


VI

Suspira no meu pescoço. Prende as mãos ao meu redor. Brinca de força comigo. Começa a me beijar de cima, o corpo, passando por onde sou mais mulher, até em baixo, no calcanhar. Arrasta o polegar pelo vale de minhas costas. Dança a língua pela nuca toda, entrando pelos cabelos e ouvidos. Rola por cima de mim. Olha minha nudez até onde eu não posso me permitir, onde me obrigo a me fechar, os olhos. Consegue a contração gelatinosa dos meus seios. Como um filho me mama. Passeia a cabeça do nariz pelo meu umbigo, sobe teu rosto até o meu; desliza por dentro de mim, muito. E, geme gostoso.


VII

Independente do corpo exausto horizontal nos lençóis, os bigodes reimosos daquele homem que eu pretendi. Continuo a sentir me coçar pelo corpo a vontade que sempre me deixava o útero doído, após. Ele dormindo, ou quase murcho, abandonado. Eu queimando, tentando reativar seu lenho convexo inesgotável, justamente por ser meu côncavo nunca satisfeito. Debruço-me e peço mais. O sono. O gasto. Resposta alguma nele, a não ser em seus bigodes que numa profunda homenagem a vigília acordam preguiçosos, se embaraçam nos meus pelos misturando líquidos. Exploram-me. Desabrocho as pernas e tremo o ventre e acalmo-me.


VIII

Amigo que me usa enquanto te uso. Ora, nós nos usamos. Todos mais ainda nos usam, não tenhamos dúvidas. Amigo tu não podes ir agora porque a noite não é mais do que uma proposta. Porém se ficas, temo me arrebentar no dia seguinte por saber-me novamente morna, querendo, sem te ter por perto como na véspera que é hoje. (De qualquer modo que me uses, gosto. E sempre vai me sobrar algum húmus que esquecestes de esgotar; se lançando de mim afora, cada vez que tu me tocar teus dedos cultivadores de pecado, do mais perverso pecado, aquele da alma, que se repuxa de dentro, começa a vir devagarinho escalando o acontecer. O acontecendo — brevidade do orgasmo unificador que apenas entreabre por poucos instantes a perspectiva do intemporal. E o aconteceu cansado).


IX

E nada como pelo menos uma vez na vida amar um homem marinho, de braços fortes e animais até no cheiro, um cheiro de vinagre. Nada como não poder enfiar os dedos por entre cabelos já emaranhados pelo vento. E o não ter cuidado para não sujar a camiseta imunda e rota. O sentir atritar nossa pele fina e fêmea com calos de mãos disformes. Nada comparável ao notar nossos pelinhos dançando quando escutam um resfolegar marulhando nos ouvidos da gente uma música tão clara e inacreditável como o sol que fica por cima e vê. Quando terminar, cair na água salgada ardendo e rindo, pedindo para experimentar uma segunda vez, lá.


X

Manso e másculo.Tag Heuer Replica Watches No meio desta cidade grande, maior do que nós, ele. Velho já, quase desativado. Conhecedor de todas as dimensões do prazer. Capaz de resgatar meu gozo com sua própria língua. E era eu quem sempre ia procurar este amante anatômico, orgânico, sábio. Ia, e num quase extinto pensamento me perguntava pra que ir se iria ter que voltar. Se conseguia estar com ele, me sufocava a impotência por não poder reter o momento entre os dedos, mesmo se ele apenas me despedisse com uma palmada por trás, mesmo se só me dedilhasse as costelas num abraço, ou seus olhos me prometessem pouco mais que um outro dia. Mas, se acontecia este outro dia, a violência dos gritos, dos tapas, das mordidas, da hora explodindo, me compensavam a sujeição da espera.


XI

O menino do recreio, no dia em que fui a sua escola buscar nada que fosse coisa como seu primeiro despertar, me acompanhou. Por que, já sendo uma mulher madura, não poder me conceder a alguém que devia ter os pêlos do púbis ralos e os da barba ainda nem ter? Irá me gratificar a falta de aspereza em meu rosto macio e avermelhado, resfolegando no minuto em que somente afastar um dos elásticos da tanga e ajudá-lo a se arrumar dentro de mim. Em pé, encostados num muro, me obrigo a movimentos peristálticos como de cobra, para arrancar dele e de seu espanto o mais inocente dos vícios.


XII

Àquele homem que não me brinca direito eu poderia ensinar descobertas, se ele deixasse. Lhe transportar para coisas que ele ainda nem ousou fantasiar, como: vamos, agora, tire minha calcinha, — eu quero — , passe no meu rosto minhas essências. Daí, querido, me lambe a pele deixando-me tonta, grunhindo sons animais baixinho e rouco. Ao final de tudo, depois de você ter untado também meus seios com sucos que restaram nossos, prove; veja que não faço restrição nenhuma em saborear seu corpo com amor. Porque é assim. E é isto que nos fará viver enquanto nossas bocas não acharem bobagem um beijo.


XIII

Pensar que hoje eu seria bem menor se não tivesse tido coragem de ir às últimas conseqüências daquela esquina na qual encontrei e quis um homem desconhecido. Num dia, já era noite, e a noite sempre me faz mais solta, cruzamos olhares pela primeira vez. Só. Com timidez lhe convidei a entrar. Me sentei no seu colo dengosa; lhe fiz carinhos pelos cabelos beijando seu lábio entregue, demorando bastante, dando tempo para que nossas roupas sumissem como cortinas operadas por mãos invisíveis. Ele não gostava que eu lhe pusesse em mim. Preferia deixar seu corpo sozinho me tentar achar, e quando achar, pudesse o meu lhe agasalhar macio. Nada me deixou impaciente, nem seu sexo escorregando fora inadvertidamente, em plena emoção. Era uma questão de pele, e a partir da pele, nos conseguimos juntos.


XIV

Desta vez sou eu solitária que me acompanho pelos caminhos de meu desejo. Mulher, de barriga para cima. Minha mão sem ser mais minha, transformada na mão do último amante, através de minhas partes vulneráveis, cruzando faíscas elétricas do ventre aos joelhos. E estas faíscas se fechando em círculo, enquanto me fantasio de odalisca ou de monja, bailarina, ou qualquer coisa que me dê direito ao inalienável momento de felicidade, o gozo, é preciso.


XV

Estava em cima de mim como um resumo de tudo que eu tinha procurado nestes tempos, você homem que faz do meu dentro uma ferida só, a sangrar, que faz minha menstruação se precipitar e meus esfíncteres se apertarem como se simulando uma virgindade que já ficou há muito nos dedos de um, (que gostoso sentar ao lado desse um na beirada do muro do quintal, e deixar); ou na pressa de outro (que mesmo assim me fazia muito mulher por fazer o que realmente era pra ser feito); ou na superficialidade de alguns, (que só faltavam me botar para correr depois); ou na humildade daqueles (que se sentem o pior dos homens por apenas se aliviarem); ou no ar vitorioso dos (que acreditam tratar-se de uma batalha). Mas, se com todos esses deixei espalhados meus pedaços, foi para que simplesmente me ensinassem a melhor apertar as coxas, como gostas.

Copyright © by Joyce Cavalccante


Texto do livro de poemas em prosa "LIVRE & OBJETO"

CAPA DO LIVRO









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